domingo, 10 de agosto de 2014

Luzes

Luzes. Milhares de luzes brilhavam ao longe, pela cidade, tornando a noite bela. Da sacada do 15º andar era impossível não encontrar beleza, mesmo que na paisagem urbana. Uma mulher observava a vida que seguia a se agitar mesmo que passasse da meia-noite, as luzes do apartamento desligadas, apenas apreciando a iluminação da cidade.
            Os anos realmente passavam rápido, quase na mesma rapidez com que os carros se moviam ao longe. No princípio, era fácil ter esperança, acreditar que a vida não precisava ser árdua, difícil e violenta. Quem tenta se proteger da realidade acaba sendo pego pelas torturas que uma mente solitária infiltra lentamente por uma existência, e o único meio de fugir disso é estar novamente vivendo, cercado de tudo e de todos que são destrutivos, corrosivos. O sangue é pegajoso e deixa marcas, ainda mais quando alheio. Esses pensamentos invadiam a mente da mulher, que se lembrava de cada perda, cada grito de medo, cada noite sem dormir. Tudo por nada
            Pensar nos amigos, nos amores, nos familiares, nada disso ajudava – de fato, era isso que machucava. Ao longo de seus 33 anos, ela podia ter sido incapaz de alcançar alguns de seus sonhos, mas isso não lhe doía, não da forma que doía ter sido forçada a desistir de quem amava, ter perdido amigos tanto para a violência quanto para as casualidades do cotidiano, a família a decepcionar todas as expectativas mais básicas. Cada vez mais a certeza era uma só: que a solidão é a única coisa que existe, o único fator inexorável e com o qual se pode contar, acima até mesmo da morte. Havia um alívio infinito na ideia de simplesmente cessar de existir, não sofrer mais pela criança em si que havia morrido há tanto tempo, pelas mágoas, pelos erros e tudo mais que havia acontecido – não mais ter aquela desesperadora sensação de que as coisas haviam se tornado um carro desgovernado que só podia ser parado com um choque final.
            Noites de vento como aquela lhe lembravam de sua infância, do calor do Mississippi e das alegrias infantis de aproveitar o verão como se fosse a melhor coisa do mundo. Todas as pequenas coisas que um dia fizeram sua vida tão completa e que agora se tornavam em nada. Lembrava de seu tio cantando belas canções com sua voz rouca e lhe levando pelo país, até que um dia chegaram em Nova York, como ela tanto sonhava em criança, e as maravilhas daquela cidade pareciam tão grandes que não cabiam em seu peito. Na primeira noite na cidade estava tão exausta que lembrava de ter dormido com as roupas da viagem ainda e com metade de seu jantar ainda por comer. Nunca havia sido tão feliz. E quatro anos depois daquela noite, quando seu tio morreu, nunca foi tão infeliz.
A beleza, a inteligência, todas as coisas boas podiam se tornar uma maldição. Era ruim ser bonita quando isso lhe impedia de ter amigos homens. Era ruim se inteligente quando isso não lhe permitia se acomodar com o que incomodava, quando não lhe permitia aceitar as coisas e ser feliz do jeito que desse. Cansada disso tudo, ela subiu e sentou no apoio da sacada, para sentir melhor o vento, tentando lembrar as músicas que seu tio lhe cantava. Lembrou-se logo de uma de suas favoritas:

“God's drifting in heaven, devil's in the mailbox
I got dust on my shoes, nothing but teardrops”

Ela ficou de pé, olhando para as luzes embaixo, a voz de seu tio, a música ecoando em seus pensamentos.  Todos os sonhos de inocência haviam sido destruídos, não havia como recuperá-los. Num impulso simples, seguro, ela mergulhou na noite. E finalmente se fez silêncio em sua mente.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Last Dance


    Os anos se passavam e tudo retornava ao mesmo ponto. A escuridão era permanente, apesar dos raros momentos em que parecia haver esperança e um pouco de beleza no meio da podridão. A insistência dela era igualmente proporcional ao cansaço dele e, aos poucos, aquilo que um dia tivera chances de se transformar na única coisa boa que poderiam ter, foi se deteriorando até o insuportável. Então, quando não havia mais caminho, sentaram-se na mesa da cozinha, por um longo momento em silêncio, fumando e tentando encontrar as palavras certas para colocar um fim naquilo tudo.
    - Eu tentei te amar por muito tempo - ele admitiu, encarando o cinzeiro. - Tentei, porque você estava sempre em todos os lugares e parecia precisar de mim. E numa tentativa tola...
    - Ah, claro, você tentou! - ela riu, amargurada. - Você tentou? Eu cuidei de você e estive...
    - QUANDO diabos você cuidou de mim? Quando não havia escapatória? Se bem me lembro, não era você que estava comigo quando perdi meu emprego, pelo contrário, você foi embora na primeira oportunidade, e só voltou quando realmente não tinha mais para onde ir. Você realmente acha que isso é se importar? Eu tento relevar e não me importar com o que você fez para mim, mas chegamos a um ponto...
    - Você querer falar sobre o que fizemos? Realmente quer? Quer puxar a lista de putas que você fodeu...
    - Quais? As que você imaginou? É uma lista muito grande, não vale a pena.
    Ela se levantou em súbita fúria e tentou bater em seu rosto, mas ele segurou a sua mão, olhando com uma imensa raiva contida em seus olhos purpúreos.
    - Você não tem o direito de fazer isso. Você perdeu todo e qualquer direito ao... ao existir da forma que existe - ele soltou a mão dela e respirou fundo, enquanto ela massageava o pulso. - Sinta-se livre para fazer o que você sempre faz, contando aos outros o quanto você é a vítima de tudo e como eu torci e quebrei o seu braço agora.
    Ela tinha os olhos cheios d'água, mas não dizia palavra. Ele saiu em silêncio, batendo a porta. Desceu pelo elevador e entrou em cheio na rua barulhenta, cheia de pessoas, com sol e vento. Ar. Ele olhou ao redor, os olhos se acostumando à claridade, o corpo se refrescando com o vento. Um vazio e um alívio nasciam ao mesmo tempo, enquanto ele respirava fundo e seguia qualquer direção. Para longe dali.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Rainbow

Dedicado a Patrícia Tagarra Pereyra.

            Após terminar todos os arranjos necessários, ela finalmente voltou ao quarto onde a noiva se preparava. Tentando não deixar transparecer nada do que tinha em mente, respirou fundo antes de abrir a porta.
            - Aí está você, finalmente! Onde diabos tinha se metido?
            - Eu só estava me certificando que tudo estava certo com as músicas a serem tocadas, acalme-se Rachel – ela fez com que Rachel sentasse em frente à penteadeira e começou a ajeitar os longos cabelos dela. – Eu sei que você quer que tudo seja perfeito.
            - Bem que queria, mas não acredito em mais nada a esse ponto – Rachel bufou, feito criança. – Não sei onde foram parar os brincos que eu queria usar essa noite, sujei meu sapato com o sorvete que eu não deveria estar comendo e...
            - Tenho certeza que dá para arrumar o sapato, onde está ele?
            - Kirsti está tentando limpá-lo para mim – Rachel disse, cabisbaixa. Linda não podia ignorar a tristeza opressiva que vinha de Rachel, espalhando-se pelo olhar, pelos gestos dela. Linda soube que estava fazendo a coisa certa naquele momento, mas permaneceu em silêncio, finalizando o penteado dela. Linda já estava em seu vestido vermelho, muito bonita com um coque alto e uma bela maquiagem, que realçava seu olhar. Rachel estava sem maquiagem e aparentemente sem ânimo para maquiar-se, mas Linda não achava que fosse o momento certo para alertá-la sobre o erro que poderia cometer. Seguiria seu plano original, mesmo que houvessem outras maneiras de solucionar tudo aquilo.
            Depois de cerca de duas horas, durante as quais Rachel simplesmente deixou que Linda e as outras mulheres presentes a arrumassem e vestissem para o casamento, ela estava pronta. O sapato estava branco novamente, os cabelos devidamente arrumados, o rosto finalmente maquiado. Aos poucos, todas as outras mulheres foram deixando o quarto, sobrando apenas Linda a acompanhar Rachel. Quando se viram sozinhas, houve um grande silêncio, que deixou ainda mais evidente que a agitação que há pouco enchia o quarto não era alimentada, nem um pouco, por Rachel. Ela se olhou no espelho por um segundo e então, de cabeça baixa, saiu pelo quarto à procura do buquê. Linda respirou fundo. Não suportava ver Rachel dessa forma, mas sabia que de nada adiantaria tentar conversar sobre o que ela estava sentindo.
            - Está tudo bem?
            - Uhum – disse Rachel, tentando sorrir e pegando o buquê. – É estranho estar vestida de noiva pela segunda vez na vida, quero dizer, isso é a última coisa que pensamos quando casamos pela primeira vez, mas enfim... Estou pronta – e sorriu, tentando inutilmente disfarçar os olhos cintilantes.
            - Então vamos – disse Linda, estendendo-lhe o braço. Rachel aceitou e seguiu Linda caminhando devagar, em silêncio. Elas haviam decidido que, já que o pai de Rachel morrera, nada mais justo do que a pessoa que Rachel mais amava a levasse ao altar. Ambas entraram no carro que Linda havia alugado e nem mesmo colocaram música, pois a tensão de ambas era grande demais. Rachel fechou os olhos e Linda dirigiu em silêncio até estacionar. Quando o carro parou, Rachel olhou ao redor, desorientada.
            - Por que paramos aqui? Você precisa de... ? – e parou de falar, ao reconhecer o Rainbow um pouco mais abaixo na rua. – O que isso significa? O que você está fazendo?
            Agora sim os olhos de Rachel estavam cheios d’água, e os de Linda também. Ela pegou firme nas mãos de Rachel, e suspirou enquanto tentava encontrar as palavras para explicar aquilo.
            - Eu... eu estou tentando salvar a sua vida, simplesmente – em falta de definição melhor, era só o que podia dizer. – A escolha é sua, é claro, mas eu precisava saber que você tinha certeza antes de fazer isso. Eu só quero que você desça desse carro, entre no Rainbow e converse com ele, apenas isso. Se você não sentir nada, prometo que estarei aqui te esperando e te levarei ao altar, festejarei contigo e tudo continua exatamente como o planejado. Mas se você sentir que ele ainda é o seu marido, ou o mínimo de paixão por ele...
            - Eu não posso ir! Por Deus, existe uma multidão me esperando numa igreja longe daqui! Isso é loucu...
            - Loucura é fechar os olhos para o que você realmente sente! Dessa vez você não vai fugir, eu não vou deixar – quase gritando, Linda permaneceu firme. – Você não tem escolha. Por todos os anos ao seu lado, eu sei, bem melhor do que você, o que estou fazendo. Agora não diga mais nada e simplesmente saia desse carro!
            Rachel ficou em silêncio, completamente parada por um momento. Olhou para Linda e para o Rainbow repetidas vezes, até perceber que a amiga jamais cederia. Com um suspiro, ela largou o buquê no banco de trás e abriu a porta do carro. Depois de um momento de hesitação, Linda pôde ouvir o barulho dos saltos altos batendo no asfalto enquanto Rachel se aproximava do Rainbow, tirando o véu e tentando caminhar da melhor forma possível com o vestido. Quando ela desapareceu atrás da porta, Linda se deu por conta de que estava chorando.
            Apesar do desconforto, Rachel conseguiu tranquilamente caminhar entre as mesas de seu bar favorito. Por um momento, quis acreditar que ele não estaria lá, mas a agonia desse pensamento foi felizmente substituída pela presença dele, numa mesa do canto. Ele estava largando o copo de uísque sobre a mesa quando a viu. Olhou-a dos pés a cabeça, comovido como só ele era capaz de ficar em tais momentos. Ao reencontrá-lo, ela sentia em seu corpo a urgência que através dos anos nunca mudava. Ele se levantou para encontra-la, já que Rachel não fazia menção de se aproximar ou sentar.
            - Linda me disse que...
            - Eu sei, eu sei – interrompeu ele, falando baixo. – Eu não consigo te ver assim, eu..
            Ele desviou os olhos, parecendo desesperado. Imaginar o que ele estaria sentindo, vendo-a pronta para se casar com outro homem fez com que Rachel quase gritasse de agonia. Num gesto brusco, ela se aproximou dele, sussurrando:
            - Eu não posso continuar com
isso, eu...
            Agora sim as lágrimas vinham, e ela o beijou com toda a intensidade dos anos de distância, do desejo que jamais passava. Abraçaram-se forte então, tornando as palavras e tudo o mais desnecessário, tudo inexistente. Depois de se acalmar, Rachel soltou os cabelos e disse, quase sem voz:
            - Preciso avisar Linda, espere...
            - Eu vou junto.

            Pela primeira vez naquele dia, Rachel sorriu, estendendo-lhe a mão. E ao se olharem, ambos riram, aliviados, alegres. Tirando os sapatos, Rachel correu pela rua, correu para os braços de Linda que já a esperavam abertos, quentes, como sempre haviam esperado. As duas riram alto ao se encontrarem, e por um longo tempo se abraçaram, rindo, chorando, enquanto Linda repetia “eu sabia!” e Rachel “obrigada meu amor, obrigada, obrigada...”. Bruce olhava rindo a cena que tantas vezes presenciara durante todos os anos que passara ao lado de Rachel. As duas se beijaram de leve, por fim, e disseram “eu te amo”, porque nada mais poderia expressar aquele sentimento que fazia com que uma salvasse a outra através dos anos, sempre.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Soprano


Deitada na cama, muito inquieta, ela ouvia música, sem conseguir parar de pensar em todas as belas palavras que ecoavam em sua cabeça. A cama de beliche fazia sombra no quarto já escuro pelo tempo chuvoso, e ela mantinha os olhos bem abertos, completamente desperta e agoniada. Uma sensação de que tinha uma responsabilidade muito grande em suas mãos não a abandonava desde que votos haviam sido feitos, desde que uma vida havia sido planejada em conjunto. Havia sonhos, detalhes, beleza – a estante compartilhada, as escrivaninhas uma ao lado da outra, a efervescência criativa alimentada mutuamente, tudo que eles precisavam para serem completos. Tudo isso se guardava dentro dele, por trás daqueles belos olhos verdes, olhos que jamais a deixavam ter paz.
No fundo, ela sabia que todo o sonho dependia apenas de um gesto frágil. Um impulso, uma respiração profunda, e tudo poderia ser diferente. De súbito, levantou-se da cama bruscamente e procurou pelas roupas mais próximas, achou um vestido e um par de tênis e após pegar algumas moedas para o transporte, saiu correndo pela rua. Por um momento, começou a pensar no que estava fazendo, mas o impulso inicial apagou os pensamentos e receios. Depois de esperar por alguns momentos, um ônibus surgiu e ela se acomodou nele, olhando através da janela sem realmente enxergar nem pensar. Era um caminho relativamente longo até o lugar onde poderia encontra-lo, e ela simplesmente esperava, observando a paisagem se afastar.
Desceu depois de cerca de meia hora, sob uma chuva forte que não a incomodava. Olhou ao redor, procurando voltar a si, porém tudo que conseguiu foi ser tomada por lembranças ao ver a catedral do outro lado da avenida – lembranças de um onze de junho que foi o começo de tudo, há tanto e tão pouco tempo atrás. Decidiu então, indo por entre as árvores e os bancos, descer a bela avenida que havia se tornado seu cenário mais particular. Apesar de ter deixado sua casa num impulso muito certeiro, agora descia a avenida sem rumo nem pressa, deixando-se levar pelos próprios passos, perdida num estranho entorpecimento. Caminhava olhando os pés, percebendo só agora que usava o par de all star amarelo no qual pensara em escrever um monte de coisas, mas jazia em branco. Ouviu algumas buzinas ao atravessar as ruas sem olhar, e ao chegar em uma calçada foi interrompida.
- Cuidado!

Num sobressalto, ela levantou os olhos, sendo tomada pelos verdes cheios de cuidado. Não havia surpresa em vê-lo ali, apenas receio. Por algum motivo, já não fazia sentido insistir em tantos sonhos. Uma palavra interrompida, um gesto frágil –e tudo se desintegrou.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Mikrokosmos XLXII




            O sol já estava se pondo quando eles finalmente sentaram na praia, com um resquício de riso ainda escapando dos lábios. Os cabelos dela pareciam mais afogueados sob essa luminosidade, mas ele nem reparava, aquele riso que permanecia em sua expressão lhe era mais encantador do que qualquer característica física. Alguns fios de cabelo voavam em seu rosto mas ela não parecia se importar. Ainda risonha, falou simplesmente, enquanto se olhavam:
            - Eu realmente te amo – e riu mais um pouco, sem fôlego de tanto que haviam corrido, brincado na água, na areia, feito as crianças que eram.
            Ela nunca havia dito aquilo. Sempre houvera sido carinhosa, sempre lhe tratara com o carinho que só os amigos mais queridos poderiam receber, porém jamais expressa tão claramente seu sentimento. Ele sentiu como se estivesse há horas em silêncio, mas na verdade falou novamente em seguida. Os seus pensamentos é que se moveram rápido demais, revivendo o dia em que a conheceu, a forma com que ela segurou sua mão e se abraçaram em silêncio, já compartilhando intimamente de muito do que jamais sonharam compartilhar com alguém. Ela parecia tão tranquila, tão segura ao dizer aquelas palavras que lhe custariam tanto, que caso houvesse pensado, não teria respondido da forma que respondera.
            - Me ama da mesma forma que eu te amo?
            O sorriso dela evanesceu por um momento. Ela baixou os olhos, se subitamente séria ou tímida ele não saberia dizer, mas o vento continuava a revolver os cabelos finos, e isso só lhe tornava mais adorável aos olhos dele.
            - Sim.
            Ela levantou os olhos, com um sorriso já se anunciando neles. Por um longo momento, ambos não fizeram nada a não ser respirar fundo e se olharem nos olhos.
            O momento era agora. Qualquer gesto, qualquer palavra alteraria para sempre o curso dos acontecimentos insignificantes – e, no entanto, tão caros – na vida de ambos.
            E já havia sido feito. As palavras, as poderosas palavras já haviam sido proferidas. Estenderam a mão um para o outro num gesto único e natural, que seria o começo, apenas o começo.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Mikrokosmos XLXI




            Sobre o criado-mudo, numa folhinha verde de bloco de notas, naquela caligrafia apertada, ele pôde reler os versos tão conhecidos:
           
            Good-bye my Fancy!
            Farewell dear mate, dear love!
            I’m going away, I know not where,
            Or to what fortune, or whether I may ever see you again,
            So Good-bye my Fancy.

            Now for my last – let me look back a moment;
            The slower fainter ticking of the clock is in me,
            Exit, nightfall, and soon the heart-thud stopping.

            Long have we lived, joy’d, carres’d together;
            Delightful! – now separation – Good-bye my Fancy.

            Yet let me not be too hasty,
            Long indeed have we lived, slept, filter’d, become really blended into one;
            Then if we die we die together, (yes, we’ll remain one,)
            If we go anywhere we’ll go together to meet what happens,
            May-be we’ll be better off and blither, and learn something,
            May-be it is yourself now really ushering me to the true songs, (who knows?)
            May-be it is you the mortal knob really undoing, turning – so now
            finally,
            Good-bye – and hail! my Fancy.”

            E tudo se apagou. Demorou um tempo até que ele pudesse se mover para se sentar na cama, muito rígido, sem lágrimas.
seria a coisa certa?
            O corpo dela, muito branco e arredondado, ressonando tranquilamente na cama, enquanto ele se distraía durante a vigília com o mesmo livro do qual ela copiara o poema, num tempo em que ela ainda era pura. Ela acordaria então e desceria para preparar o café e ler um pouco, enquanto ele arrumava a cama e preparava-se para mais uma vez viajarem juntos. Às vezes ela acordava muito séria, com um sorriso triste, e ele sabia que ela lembrava da morte, da família que não tinha mais, da finitude das coisas. Eram dias onde nada além deles era necessário, mas o inevitável acontecia e logo as coisas mudaram e ele, por algum instinto não justificado, passou a acreditar que o melhor seria “seguirem em frente e crescer”, sem que ele próprio pudesse entender ao certo o que isso significava, apenas o que envolvia – separação. E então foi o que fizeram e, depois de tanto tempo, de tantos avanços e recuos, ali ele encontrava o poema que mais belamente descrevia a delicada rendição dela. O pensamento, a imagem de tal alma se rendendo tão tranquilamente, longe de qualquer tipo de ódio, fez com que ele lembrasse quem ela realmente era. E com isso, subitamente, toda a distância, todo o crescimento forçado e toda insegurança se tornaram apenas fruto da ignorância e do medo. Entretanto, era tarde demais para que qualquer coisa fosse feita a respeito, as folhas já haviam caído e nascido novamente e só então ele se deu por conta de seu erro.
            Então chorou. Chorou como o menino que era, menino que em sua inocência havia pecado, mesmo sem saber que era pecado. A neve era reconfortante, porém a desolação por ter cometido tamanha falta não permitia que ele se sentisse tranquilo por muito tempo. De imediato entendeu que aquela seria uma noite bastante difícil, e para noites assim, mesmo suas mais antigas fórmulas de conforto e aconchego (os livros de Tolkien, uma xícara bem quente de chá, café ou um bom vinho e a solidão de seu quarto, com a janela aberta para os pinheiros) não funcionavam. Resolveu então procurar algum bom filme para assistir, e não pôde pensar em algo melhor e mais triste do que Born of Hope – o qual, ele lembrou depois de uns trinta minutos, era o favorito dela. Não era meia-noite ainda quando uma batida leve soou na porta.
            - Pode entrar- disse ele, resignado a ser incomodado nesse momento.
            - Tem alguém querendo te ver, filho – uma pausa, hesitante. – Mando subir?
            Só poderia ser o irmão dele. Haviam brigado há poucos dias e ele certamente viera se desculpar. É claro que, na verdade, ele tinha esperanças que ela tivesse aparecido, mesmo depois dos anos passados, e sua esperança aumentava à medida que ouvia ruídos nas escadas e olhava para o bilhete que ainda naquele dia havia sido depositado em seu criado-mudo. Uma batida de leve e, no mesmo instante, é claro, ele a mandou entrar.
            - Perdoe-me por aparecer assim sem avisar e em hora tão inapropriada – começou ela, muito timidamente, sem olhá-lo nos olhos. – Eu avisei a sua mãe, porém ela se esqueceu de pegar os livros e o suéter do seu quarto, e insistiu que eu mesma subisse e os pegasse. Espero não estar atrapalhando muito, e prometo ser rápida.
            - Você é bem-vinda, não se preocupe. Fique à vontade, o quarto é seu também.
            Ele se sentou na cama e ali permaneceu, completamente constrangido, sem saber o que deveria fazer. Ela tinha a mesma aparência de dois anos atrás, exceto por estar mais magra, talvez um pouco abatida. Ela andava de cabeça baixa e muito rápida e cuidadosamente recolhia os objetos esquecidos por tanto tempo – ou talvez perdidos pela falta de coragem de toma-los de volta. Tomado por um impulso, tão súbito que ele nem se deu por conta do que estava fazendo, levantou-se e tocou de leve no cotovelo dela, a pedir que o olhasse. Ela se virou, parecendo um pouco ansiosa. Esperou em silêncio que ele se manifestasse.
            - Aquele poema era exatamente o que eu precisava ler. Obrigado por tê-lo deixado aqui.
            - Por nada. É apenas como me sinto.
            - Existe alguma maneira de mudar isso?
            Ela franziu o cenho, mas ele reconhecia o interesse, a esperança nos olhos dela. Poderia estar errado, afinal, talvez não a conhecesse tão bem depois de tanto tempo distante, no entanto parecia-lhe claro que a ansiedade que ele sentia por falar era a mesma que ela sentia por ouvir.
            - Eu acredito que nosso futuro juntos nunca deixou de existir. Mesmo quando ambos deixamos de acreditar, ele sempre esteve lá.
            - O que quer dizer... ?
            - Eu só preciso saber se você também sabe da existência do resto das nossas vidas em comum. Preciso saber se, assim como no dia em que nos casamos, você ainda acredita que só podemos ser verdadeiramente felizes um com o outro.
            Ela respirou fundo, com os olhos cintilando. Depois de um bom tempo, parecendo quase irritada, perguntou:
            - Você tem noção do que está propondo, sugerindo... ?
            - Absoluta noção. Você ainda me deseja por perto, Elizabeth?
            Ela tremeu. E de repente, não mais que de repente, seu rosto se transformou em pranto e ela não pôde mais esconder as lágrimas. Ela as limpou bruscamente, como se não gostasse de si mesma por chorar assim, e respondeu:
            - Sim, eu quero. De uma vez por todas.
            Eles não sorriram ou choraram. Olharam-se e logo se beijaram, intensificando tudo à medida que outra vez sentiam-se preenchidos pela presença mútua. Pela primeira vez, em anos, dormiram tranquilamente. E quando ela despertou, desceu para preparar o café enquanto ele repousava o livro da vigília na cabeceira, não mais um livro triste, mas as mais belas histórias que lhe preenchiam com alegria e um pequeno gosto de eternidade.

segunda-feira, 18 de março de 2013

Hopeful Friend


The coffee house was surprisingly full for such a snowy day. The big windows allowed him to see people passing on the street but it only made him more anxious. He took a long time to recognize her, even though she hadn't changed, apparently. Her long white coat made her look younger, and even at distance he could see that she was happy. She entered the coffee house looking for him, and he had forgotten how lovely she looked when she was like a child searching for him. She hanged her coat and then finally saw him, smiling as beautifully as he remembered.
- You're here! - he said, holding her hands strongly. She agreed with her head, looking deeply into his eyes, as if it were her last chance to look at them. He ordered coffee for them both while she looked at his hair, his amazing blue eyes and even his hands. They smiled again at each other, and only then he started talking.
- I thought you'd never come back from Italy, I mean... you are back, aren't you?
- Yes - she smiled, opening space for the waiter and thanking for the coffee. - I could never live there. It's a good place for spending a vacation, but it's not home.
He couldn't help loving the way she had of calling Finland "home". It always gave him hope of a better life by her side, and he didn't know whether he should feel hopeful or not about how calm she seemed talking about home - she seemed so sure, unlike before when she used to call Finland home with all her heart, but with an unknown fear in her eyes.
- How are the boys? - she asked.
- Fine. Missing you, though - she suddenly became a little sad. - Do you want to pick them up at school today?
- Of course! Do they still leave at 4?
- Yes, but we can go together.
- Better, then - she drank her coffee, looking throughthe windows to the snowy landscape. She really seemed content for being there. Trying to find courage to finally speak, he took a deep breath, and went to drink his coffee but she heard his breath and looked at him. She hesitated, but said:
- I... I don't know where, but I'll live here now. I am here to stay.
His heart started beating really fast. He tried to speak calmly:
- And do you consider living in Helsinki instead of Kuopio?
- Actually, yes. I am considering going back to college.
- Really? Start your PhD?
- Perhaps. I don't know yet, but it does seem interesting - she looked down and, seeming embarassed, continued - Perkko doesn't know that I returned.
He got really surprised. Perkko had been her boyfriend for years and wanted to marry her, but was never able to convince her to do so. She often traveled abroad leaving him behind, and Perkko always waited for her, even though she never asked for it.
- What does it mean? - he finally asked, because he couldn't understand her feelings for Perkko.
- I don't know. I guess I don't want this life anymore, you know? Perkko is adorable but I feel locked up with him. I don't want to feel like that anymore.
- Did I ever make you feel locked? 
- No, for God, I was free with you - she smiled, getting very blushed. - I had the happier times with you.
He was surprised by her reaction. He would never expect her to leave Perkko. Suddenly, he felt that it was the perfect moment to speak.
- I have news for you about Perkko - he tried to find enough courage to face her reaction to these news. - Perkko is with... someone else now.
She looked at him, deeply astonished. She stayed in silence for a very long time, staring at the floor. He could barely breathe, while she was biting her lower lip, and he couldn't read anything in her eyes. After several minutes, she finally looked up at him and whispered, hesitating:
- Does it mean that... if we wanted... if we decided... we could be together, you and me?
He could expect her to say anything but this. He did not know what to say for a very long time, while he tried to dygest what he had just heard. Instead of answering, he said:
- Allow me - he picked from the floor a big bag from a store. He had kept it by his side, where she couldn't see. She was suprised too. - Open it, please.
She looked at him for some time, still confused, but then decided to open it. First, she opened a little package that had a Donald Duck mug within. Still confused, she opened the other package, and there was a Minnie pyjamas exactly her size. She looked at him, completely confused, although she'd love those gifts for whatever reason he could have given it to her. He took a deep breath and tried to explain:
- You always said that for being at home you needed to feel confortable and safe, with things that you loved. I know how much you love these Disney stuff, and I thought I could make you feel at home if you had those in my place... - his eyes started to hurt because of the water in them - that can be ours if you want to.
Her eyes gleamed with tears and her cheeks blushed. She agreed with her head and said very low:
- Let's pick up our children at school.
He agreed with his head and they left the coffee house. Once outside, she took his hand and stopped walking, looking at him at every single feature. Then, she kissed him on the lips for a moment, holding him and trying to disguise the tears. They went to his car holding hands, and when he opened the door for her, they finally smile, starting to laugh, suddenly realizing how happy they felt. But this happiness was scary, because this life that they were about to start always was impossible, and then it became more than possible, it was their reality. They hugged again, until she step away.
- We'll be late to pick up the kids - she said, smiling. He agreed and drove to their school, and a silent bliss took over  them. She tried very hard not to stare at him the whole time, but it was very difficult not to look at the man she loved for so long. When they arrived at school, the kids were already going out, and she left the car very fast and ran to the gates, looking anxiously for his twin kids, but the boys saw her first. One of them saw her and then yelled "mom!" and ran into her arms, while the other followed. She smiled, opening her arms for both of them, holding them strongly, stroking their hair and kissing them both. The twins always loved how warmly she treated them, and even after all this time they still called her "mom". He stayed looking from the pavement his children and the woman who should be his wife - and finally, would be.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Mikrokosmos XLX


Ao entardecer, como de costume, ele pegou o livro que estava lendo (mais uma vez, Leaves of Grass), uma xícara bem quente de café, seu maço de cigarros e foi ler na beira do lago, no seu banco de madeira simples e, entretanto, seu favorito. Caminhava calmamente até o lago, quando percebeu que alguém já estava sentado no banco. Parou por um instante, não tinha certeza se deveria ou não se aproximar. Às vezes as pessoas também podem fugir assustadas por culpa de movimentos bruscos, impensados. Devagar, foi se aproximando, deixando-se notar pelo leve rangido das tábuas por onde pisava. Depois de um momento, ela se virou, sobressaltada, mas então seu susto passou ao reconhecê-lo, mesmo que estranhamente não houvesse sorrido.
- Não esperava te encontrar aqui - disse ele, baixinho, sentando-se ao lado dela.
- Eu precisava vir - ela respondeu, encarando o chão. - Já era tempo, não concorda
Ele foi surpreendido pela pergunta. Tantas coisas inesperadas haviam acontecido que ele já não guardava muitas certezas, e sua capacidade de julgar lhe parecia duvidosa. Começou a tentar refletir sobre o assunto, mas foi interrompido por ela:
- Nós fizemos inúmeras coisas no ano passado. Arriscamo-nos feito loucos, tentamos coisas novas, e fomos felizes, mesmo com todo o temor, com toda a saudade de casa. Nós tentamos, e conseguimos. Foi bastante bonito, mas acho que agora chegou a merecida hora de voltarmos para casa.
Ele ficou pensativo, surpreendido por tudo que ouvira. Ainda não havia tido tempo para pensar em tudo que havia acontecido e, de fato, as coisas postas dessa forma faziam sentido. Mas seria mesmo esse o tempo de voltar para casa? Não seria cedo ou tarde demais? As decisões que outrora surgiam tão certeiras agora eram frágeis e oscilantes. Tinha medo de expressar suas dúvidas e magoá-la, mas ao mesmo tempo realmente não sabia o que fazer. Tentou pensar na melhor forma de dizer o que sentia sem passar ideias errôneas, que poderiam machucá-la, mas o melhor que conseguiu dizer foi isso:
- Será mesmo que já é tempo? Talvez ainda tenhamos coisas por fazer.
Ela não pareceu surpresa pela hesitação dele, mas olhou-o tristemente. Parecia muito cansada, até mesmo um pouco pálida demais. Ela era capaz de reconhecer as boas intenções por trás da dúvida dele, porém sabia que eram desnecessárias.
- Nós já fizemos o suficiente, pelo menos por enquanto. Existe um limite de coisas que se pode atingir e depois simplesmente temos de descansar, antes de começar de novo. Mas é necessário descansar, é indispensável. Achei que à essa altura você já soubesse disso - mas logo ela entendeu que ele não relutava em descansar, mas sim descansar nesse momento. E então, de repente, as incertezas dele ficaram claras, e ela tomou sua mão nas dela. Ele a olhou, surpreendido e inesperadamente alegre pelo gesto.
- Nosso tempo chegou sim, muruseni. É difícil de acreditar, porque foi difícil, assustador e gratificante estarmos longe, tentando coisas novas, arriscando tudo o que deveríamos, mas agora realmente basta. Nós precisamos ir para casa - e seus olhos subitamente cintilaram. Ela se levantou, ajeitou a pesada maleta que estava do seu lado do banco e lhe estendeu a mão.
- Vamos?
Ele hesitou por um momento. Ao mesmo tempo que queria aproveitar um pouco mais o período produtivo que haviam passado, não via a hora de realmente voltar para casa, havia contado os segundos para esse momento. Respirou fundo e, num gesto firme, segurou a mão que ela lhe estendia, perguntando:
- Todos os seus livros estão aí?
Ela assentiu sorrindo, já com lágrimas correndo pelo rosto, e os dois se abraçaram forte para quase sufocar, ela finalmente se deixando chorar tudo. Parecia murmurar "casa" às vezes, e ele acariciava seus cabelos que, por Deus, ele quase havia esquecido o quanto eram cheirosos. Também quase se esquecera como seu corpo era pequeno, delicado contra o dele. Depois de um longo momento, ela se afastou, limpou as lágrimas sorrindo e perguntou:
- Podemos acampar de novo esse ano? Foi produtivo e divertido da última vez...
- Produtivo? Fale por você...
Os dois riram, emocionados; ele pegou a mala pesada com livros e eles foram caminhando devagar, conversando e olhando as árvores. De volta e, de preferência, para ficar.